domingo, 17 de fevereiro de 2008

O dia em que a música brasileira ganhou e perdeu um grande compositor


Há um tempo atrás fui convidada para o lançamento de um CD.
Fiquei tão espantada ao saber que o rapaz ia lançar um CD, pois eu não sabia que ele era compositor e ele me respondeu com o peito inflado que tinha 200 músicas registradas em seu nome.
Aparências enganam, pensei ainda meio inconformada olhando para aquela figura disforme, alta e extremamente magra.
Passei o dia inteiro com aquele pensamento a me atormentar: 200 músicas! Seria possível?
De uma coisa eu tinha certeza era que o rapaz não era nenhum literato, mas até onde eu sei, Milton Nascimento, Beto Guedes, Lô Borges, Dominguinhos, Luiz Gonzaga também não eram formados em nenhuma faculdade e nem por isso deixaram de ser brilhantes.
Passei o dia tão envolvida com esses questionamentos que nem me detive nos detalhes da festa em si. Era a primeira vez que alguém que eu conhecia tinha conseguido lançar um CD.
Em meus tempos de adolescência a gente formou uma banda. Cantávamos o que fazia sucesso e compúnhamos pouco. Achávamos difícil combinar palavras, dar sentindo, fazer parecer melodioso e conseguir passar a mensagem.
Eu conheci uma pessoa que tinha 200 músicas registradas em seu nome e ia lançar um CD. Um de uma série, pensava eu, pois em um CD não cabem 200 músicas.
O que será que essa figura tão estranha compunha? Eu me indagava o tempo todo sem conseguir a resposta. Era uma incógnita, pois uma figura célebre como o Mário Lago compôs uma música sertaneja lindíssima como Rancho Fundo e Marcos Valle, uma figura tipicamente “cuca fresca”, conseguiu compor um clássico da MPB como Viola Enluarada.
O autor do famigerado CD era uma figura taciturna e que quando falava parecia ter um ovo escondido na boca. Além de ser o autor ele ia cantar todas as músicas do CD?
Não era inveja o que eu sentia, apenas não conseguia compreender como uma figura como aquela podia compor tanto em tão pouco tempo. Também me perguntava sobre o que seriam as suas músicas.
Quando pensamos em lançamento de CD pensamos em algo glamuroso com noite de gala, convidados especiais, gente famosa e toda publicidade que o evento merece.
Eu me sentia lisonjeada em ter sido convidada para o lançamento, afinal, não é todo dia que a gente é convidado para um evento desse porte. Aliás, desde que me mudei para a “roça” nunca mais tinha sido convidada para nada.
Terminado mais um dia de trabalho, fui para casa comunicar aos meus familiares sobre o evento. Todos ficaram tão espantados quanto eu quando disse quem era o autor do CD, mas enfim, decidimos ir porque ficava bem perto de casa e se tudo mais desse errado era só voltar rapidinho.
Quando chegamos ao local do evento, eu achei tudo meio estranho, pois o chão era de terra e tudo me pareceu meio improvisado, mas fomos tão bem recebidos e o rapaz estava tão contente com nossa presença que achei melhor deixar para lá.
O grande problema é que o local foi enchendo, enchendo, enchendo e eu detesto aglomeração. Foi quando o “nosso amigo” teve a feliz idéia de nos levar para conhecer o camarim.
Eu estava mesmo exultante! Além de conhecer um autor que compôs 200 músicas ainda ia conhecer o camarim e o artista principal da festa, pois nosso “amigo” abriria o show de algum artista famoso.
Quando cheguei ao camarim e vi quem era o artista principal comecei a perceber que havia algo muito errado naquela festa e que havia entrado na maior furada.
O artista principal da noite era nada mais nada menos do que Tati Quebra Barraco!
Naquele momento eu tive a certeza de que no dia seguinte acordaria no céu, pois aquilo só poderia ser o purgatório!
Eu não queria acreditar no que os meus olhos estavam vendo, entretanto todas as minhas perguntas foram respondidas de uma só vez: O rapaz não compôs 200 músicas e sim 200 funks!
Caiu a ficha! Eu precisava ir embora daquele lugar com urgência, mas como fazer isso sem ofender o dono da festa que tinha me dado até um CD autografado?
Como não conseguiria sair de imediato comecei a levantar os detalhes sórdidos da coisa e descobri que o rapaz conseguiu ajuda de um comerciante local, alugou um estúdio por algumas horas e gravou UM CD. O comerciante pegou esse CD, colocou em seu computador e fez 1000 cópias que deveriam ser vendidas nas bancas de jornais locais e na noite de lançamento. As músicas seriam divulgadas nas rádios comunitárias locais.
Eu juro que tudo que conseguia pensar era que desejava que aquela noite nunca tivesse existido!
Não queria estragar a felicidade de ninguém, então, quando as luzes se apagaram e o rapaz falou a primeira, aliás, a única frase da música, eu peguei a minha família e fui correndo para casa antes que alguém percebesse, lógico que eu já tinha me posicionado mais ou menos perto da saída.
Cheguei em casa exausta depois da aventura de sair no meio de um baile funk lotado, mas tinha que ouvir o CD, para dar a impressão de que tinha ficado pelo menos até o final do show do rapaz, afinal, fomos convidados especiais, não pagamos a entrada e nem o CD.
Eu tinha que ouvir aquele CD até por uma curiosidade mórbida. Precisava saber se todas as “músicas” eram iguais a que eu ouvi enquanto saía daquele “maravilhoso” baile de lançamento.
Ouvi pacientemente uma por uma das 14 músicas que compunham o CD e 13 delas eram exatamente iguais a primeira, isto é, eram compostas de uma ou duas frases e mais nada. Para minha surpresa a última música tinha até letra com crítica social, o que me fez sentir menos desolada naquele momento.
Usando o raciocínio matemático, se o rapaz tinha 200 músicas registradas em seu nome e eu conheci 14, conheci apenas 7% do total de sua obra. E se dessas 14 músicas, 1 tinha uma letra razoável, isto é 0,14%, havia uma probabilidade de ter mais alguma coisa que se aproveitasse nas demais, baixa, mas havia.
No dia seguinte não se falava de outra coisa senão no lançamento do CD. Lugar pequeno, muito pouca coisa acontece e quando uma “minhoca” da terra lança um CD, mesmo que de mentirinha, vira um acontecimento.
As rádios locais só tocavam as músicas do rapaz.
Nem preciso dizer que euforia durou muito pouco tempo, o CD não vendeu nem as 1000 cópias tiradas, o rapaz desistiu da carreira de cantor e compositor e arranjou um emprego porque tinha família para sustentar e não dava para ficar vivendo de sonho.
Eu guardo o meu CD até hoje de recordação, afinal, com tanto lixo vendendo no mercado fonográfico, quem sabe algum dia descubram que afinal o rapaz tinha talento e seu autógrafo passe a valer milhões, nunca se sabe.

Um comentário:

  1. Katia
    No fundo, você é uma pessoa sencivel.
    Acabou com pena do tal fankero, achando que deveria quem sabe, haver algo de bom na sua obra.
    As pessoas que sabem ou que querem ver, mesmo num "nevoeiro", a beleza,sao as mais senciveis.
    Nao perca nunca essa sua qualidade!
    Beijos

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